Reflexão sobre o Estudo de Avaliação do Ensino Artístico
Congratulo o aparecimento deste documento e, sem qualquer pretensão, e porque o tempo é escasso, apenas farei referência aos conteúdos que me parecem realmente importantes a tratar, assim como a algumas questões que me parecem pertinentes.
1. O foco das fragilidades do Ensino Artístico em Portugal
Do que retenho e destaco no documento em discussão, há um ponto que sintetiza todos os problemas do ensino artístico: o foco da fragilidade do ensino artístico não se localiza nem na falta de qualidades artísticas ou pedagógicas dos seus professores, nem no esforço contínuo daqueles que gerem instituições com História e responsabilidades intrínsecas, mas antes na falta de regulamentação objectiva e sistematizada “O resultado desta situação é a desregulação, é uma situação de auto-gestão, que a a administração se parece limitar a constatar, mas que as próprias escolas não apreciam de todo pois reclamam um enquadramento legal sólido e coerente capaz de as orientar nas suas acções pedagógicas e administrativas.” (“Relatório sobre o estudo de avaliação do ensino artístico.” p. 44) e no excesso de legislação incoerente “A administração parece viver submersa num mar de legislação avulsa, sem racionalidade perceptível, e foi-se habituando a conviver com os factos consumados que as instituições foram produzindo ao longo dos anos. Talvez por isso mesmo dirigentes e professores dos conservatórios afirmem repetidamente que “há um grande desconhecimento acerca dos conservatórios e do seu funcionamento” ou que “a tutela ignora as nossas especificidades” ou ainda que “não há interlocutores com conhecimento efectivo dos problemas deste subsistema.” (“Relatório sobre o estudo de avaliação do ensino artístico.” p. 66).
Realmente, a especialidade das escolas do ensino artístico não se traduz em qualquer “superioridade” face às escolas onde são leccionados os Cursos de Científico-Humanístico de Ciências, etc., tal especialidade resulta, tão só das exigências inerentes à especificidade do seu objecto de ensino, que se reconduzem aos seguintes pontos:
1. Instalações com condições diferentes daquelas que são exigíveis para uma “normal” sala de aula;
2. A necessidade de uma maturidade fisionómica para o estudo dos diferentes instrumentos (Canto, Tuba, Trombone, etc.). “Music, therefore, must fall within the prhysical capabilities of the performers and listeners.” ABELES, Harold F. & Hofffer, Charles R. & Klotman, Robert H. (1994): Foundations of music education. Schirmer Books: New York (2ª edição). P. 123;
3. As diversas e eclécticas actividades e consequentes necessidades (Recitais, Órgão de tubos, Orquestras, Coros, Ópera, Música Antiga, Música Electroacústica, etc);
4. A componente performativa (que também é formativa) dos professores;
5. A necessidade de existirem pré-requisitos para o acesso a este ensino;
6. O ensino individualizado. “Greer stresses the difference of the PSI (Personalized systematic instruction) model of learning from the general system-approach model (…). The difference focuses on the assignment of the responsibility for learning, which Greer suggests is placed on the student in the generalized systems approach, while in the PSI model the teacher (within his or her power) is responsible for the student attaining the staged goals.” ABELES, Harold F. & Hofffer, Charles R. & Klotman, Robert H. (1994): Foundations of music education. Schirmer Books: New York (2ª edição). P. 253;
7. A necessidade do estudo diário, regular e metódico, tanto da parte do aluno, como da parte do professor;
Estas especificidades não poderão deixar de possuir repercussões na organização do ensino artístico, devendo também ela ser especializada, delineada, desde a sua base, para prosseguir os específicos objectivos de um ensino artístico que se pretenda minimamente rigoroso e profissionalizante.
2. O carácter precário do presente Relatório
De todo o modo, acompanho inteiramente a “(...) convicção da equipa (...)” de “(...) que uma reflexividade que se pretenda efectivamente sustentada, tendente à construção de uma mudança no campo educacional, necessita de desencadear uma discussão em torno das referências teórico-organizacionais utilizadas num conjunto de países que se impõem como parte integrante de uma solução civilizacional que reconhecidamente está mais ou menos próxima da nossa.” (“Relatório sobre o estudo de avaliação do ensino artístico.” p. 12). Mais ainda se reforça esta necessidade quando é recomendado “Promover um seminário sob o tema Conhecer o Ensino Artístico Especializado, no qual os participantes pudessem analisar e discutir (...)” (“Relatório sobre o Estudo de Avaliação do Ensino Artístico.” p. 24).
Esta conclusão, leva-nos a salientar que os próprios autores do documento agora sujeito a discussão pública, não assumem o seu relatório como conclusivo, pelo que nenhuma iniciativa legislativa poderá ser promovida validamente por invocação das intuições que aí se plasmam.
Pelo contrário, antes de qualquer iniciativa legislativa, urge antes uma discussão pública efectiva de todos os actores do ensino artístico nacional, sem descuidar a participação activa do Ministério da Cultura, dos representantes do Ensino Superior – das Artes em particular - e, no contexto possível, da sociedade Portuguesa e da sua administração. Não podemos isolar a avaliação e disparar argumentos sem que contextualize e se faça a interacção entre os diversos responsáveis e agentes educacionais e culturais do país. De facto, era “(...) desejável aprofundar o conhecimento acerca de algumas situações (e.g., ensino artístico especializado nas escolas do ensino particular e cooperativo, ensino artístico nas escolas profissionais) através de uma recolha e análise de dados mais pormenorizada e/ou através de estudos realizados in loco.” (“Relatório sobre o Estudo de Avaliação do Ensino Artístico.” p. 4).
3. Do método e critério de avaliação utilizado no Relatório
Referindo-nos, agora, ao critério utilizado para aferir do grau de sucesso do ensino artístico, não posso deixar de referir a minha total discordância com tal critério.
Desde logo, o método utilizado ignora o expressivo número de estudantes- trabalhadores (com ou sem estatuto), ou de estudantes universitários, que vão exercendo a sua actividade no domínio da Música, sem nunca chegarem a concluir o Conservatório. Passo a enumerar algumas das actividades exercidas por estes alunos:
- Professores de Música em escolas privadas
- Professores particulares de Música
- Professores de Música em Bandas de Sopros
- Professores de Música em Colégios
- Professores de Música em Infantários
- Professores de Música em Actividades do Enriquecimento Curricular (um dos meus alunos é coordenador das AEC em Vila Nova de Gaia)
- Membros em Bandas de Sopros, onde usufruem de uma pequena remuneração anual e, muitas vezes, de um instrumento emprestado pela Banda
- Membros de Coros Associativos
- Membros de Coros Litúrgicos
- Membros de Tunas Académicas
- Membros de Tunas Associativas
- Directores/Maestros de Coros (litúrgicos, associativos, infantis, 3ª idade, etc)
- Directores/Maestros de Bandas de Sopros
- Músicos de Bandas Rock/Pop/Jazz/Fado/popular
- Músicos de Orquestras de Jovens
- Músicos em grupos de Casamentos
- Cantores em Coros de ópera
- Cantores (solistas) com orquestras
- Produtores
- Técnicos de Som
- Etc.
Todas estas funções compõem, em grande maioria, toda a actividade musical e cultural do país fora do contexto das grandes salas e das grandes cidades (que muitas vezes é assegurada por grupos e artistas estrangeiros). E qual será essa percentagem?
Uma avaliação do sucesso do ensino artístico não pode restringir-se ao número de diplomados que “produz”, quando na maior parte das situações a Administração não exige esse diploma. Temos realidades culturais, como as Bandas de Sopros (em número expressivo na Região Norte e na Região Centro do País) e os Coros Amadores, que em muito têm contribuído para a formação de Músicos Profissionais e para a educação e manutenção dos mesmos. São quase centros de pré-requisitos para os futuros alunos dos Conservatórios, assim como deveriam ser as escolas do ensino genérico/regular. E neste aspecto, se as Actividades de Enriquecimento Curricular, na área da Música, não forem coordenadas pelos Conservatórios, serão coordenadas por que instituições? Em alternativa só se entende que sejam pelas escolas do ensino superior. Não entendo porque são coordenadas, na área da Música, Actividades de Enriquecimento Curricular por pessoas de formação, muitas vezes, incompleta ou escassa.
Por outro lado, existe ainda um núcleo de alunos – também esquecido neste Relatório - que frequenta o Conservatório e que não está contemplado em estatísticas. São os alunos das escolas superiores de educação, tanto estatais como privadas. Muitos, ainda não completaram o Curso Básico e já são aceites no Ensino Superior, em Cursos que formam professores de Música para o Ensino Genérico. Muitos começam a estudar música tarde e complementam as suas aulas nas ESE com a formação no Conservatório, estando nas duas instituições simultaneamente.
Face a estes exemplos, parece óbvio que o regime supletivo tem de continuar a existir, para garantir o cumprimento do artigo 73.º da Constituição da República Portuguesa, de acordo com a qual:
1. Todos têm direito à educação e à cultura.
2. O Estado promove a democratização da educação e as demais condições para que a educação, realizada através da escola e de outros meios formativos, contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida colectiva.
3. O Estado promove a democratização da cultura, incentivando e assegurando o acesso de todos os cidadãos à fruição e criação cultural, em colaboração com os órgãos de comunicação social, as associações e fundações de fins culturais, as colectividades de cultura e recreio, as associações de defesa do património cultural, as organizações de moradores e outros agentes culturais.
Defendo o regime integrado, ou articulado, mas não o aprisionamento da exigência em função de números positivos mas antes possíveis.
Defendo o supletivo (gratuito, porque representamos o Estado e o acesso gratuito), mas defendo, também, a exigência de acesso às instituições e/ou cargos que usufruem da nossa formação (Ensino superior, cargos artísticos e cargos pedagógicos).
Relativamente à precariedade dos contratados, posso dizer que no ano em que foi possível a profissionalização nas escolas estatais (2005), concorri e foi-me negada essa possibilidade por causa da natureza do meu contrato.
Quanto à actividade dos Conservatórios, e nomeadamente a do Conservatório de Música do Porto, peço-vos que consultem:
http://www.ct-musica-porto.rcts.pt/
www.passeipeloconservatorio.blogspot.com
www.paraladasparedes.blogspot.com
Em nota conclusiva, permitam-me que sugira, dentro da disciplina de Coro/Classe de Conjunto, o seguinte:
o Criem estruturas culturais que sustentem a NOSSA CULTURA e que valorizem os nossos artistas, nomeadamente a falta, lamentável, de um Coro Profissional no Norte do País.
o Criem Coros Infantis nas Actividades de Enriquecimento Curricular.
o Valorizem e incentivem a criação de repertório musical português para a infância por compositores de reconhecido mérito.
Atenciosamente,
Magna Ferreira
(Professora de Coro/Classes de Conjunto no Conservatório de Música do Porto;
site: pwp.netcabo.pt/magna.ferreira)